domingo, 30 de agosto de 2009

- Será Sírius? – perguntei-lhe contra minha vontade, pois não queria perguntar nada.
- Não, essa é a mesma estrelinha que tu viste entre as nuvens, quando voltavas para casa – respondeu-me o ser que me conduzia, e do qual eu sabia somente que tinha um rosto humano. Mas, coisa estranha: aquele ser não me era simpático e inspirava até uma profunda aversão. Eu tinha contado com o não-ser absoluto e, partindo dessa hipótese, tinha decidido suicidar-me. E agora me encontrava nos braços dum ser que não era, evidentemente, um ser humano, mas que nem por isso deixava de ser uma realidade, e era-o efetivamente.
“Portanto há uma vida depois da morte! – pensei eu com essa estranha rapidez daquele que dorme, se bem que a essência fundamental do meu coração conservasse em mim toda a sua profundidade. – Já que tenho de existir outra vez e outra vez tenho de viver, por mandato de não sei que vontade inapelável, não quero que ninguém me vença nem me humilhe!”.
- Tu sabes que eu tenho medo de ti e é por isso que me desprezas – disse de repente para o meu condutor. Não tinha podido conter-me e tinha-lhe feito a humilhante pergunta que trazia implícita a confissão, e sentia no meu coração a dor do meu vexame, como uma punhalada. O ser não respondeu à minha pergunta, mas senti subitamente que ele não me desprezava nem se ria de mim, e que nem sequer se apiedava, e que o nosso vôo tinha uma finalidade, uma meta desconhecida e misteriosa, e que só a mim interessava. E o temor cresceu no meu coração. Algo emanava do meu mudo condutor, em silêncio, mas dolorosamente, sobre mim, e me oprimia o coração. Atravessávamos obscuras e ignoradas esferas. Havia já muito tempo que tinham desaparecido da minha vista as constelações conhecidas. Eu sabia que nos espaços interplanetários há astros cujos raios de luz levam milhares e até milhões de anos a chegar à Terra. Mas é possível que tivéssemos percorrido já distâncias ainda maiores. Eu esperava não sabia o que, e a nostalgia torturava o meu coração. E, de súbito, surgiu em mim um sentimento conhecido, familiar, vi o Sol! Eu sabia que não podia ser o nosso Sol, o pai da nossa Terra, o que engendrou a nossa Terra, mas compreendi, em virtude não sei de que, com o meu ser, que aquele Sol era um Sol absolutamente como o nosso, que era a sua reprodução e o seu duplo. Um doce, animador sentimento encheu de prazer a minha alma, a preciosa, corpórea força da luz que me tinha engendrado, encontrou repercussão na minha alma e fê-la ressuscitar, e eu senti a vida, a vida de outrora, pela primeira vez depois do meu enterro.
- Visto que existe o Sol e é um Sol completamente igual ao nosso – exclamei -, onde está a Terra?
E o meu companheiro apontou-me uma estrelinha que despedia um brilho esmeraldino. Voávamos precisamente por cima por cima dela.
- Como é possível existirem no Universo tais cópias? Será essa, verdadeiramente, a lei do Universo? E, se esta é a Terra, diz-me: será uma Terra como a nossa... uma Terra também desditada e pobre, mas não menos apreciada e querida, que inspire o mesmo doloroso amor aos seus mais ingratos filhos, como a nossa Terra? – exclamei, tremendo com um amor arrebatado, audaz, irreprimível, por aquela Terra sagrada, a lôbrega e enxovalhada Terra que acabava de abandonar. E a figurinha da pequenina, que eu espantara com um grito, surgiu instantaneamente na minha memória.
- Hás de ver com os teus próprios olhos – respondeu o meu companheiro, e uma tristeza vibrava na sua voz.
Aproximávamo-nos velozmente do planeta. Este agigantava-se diante dos meus olhos, e eu podia já distinguir os oceanos, perceber depois os contornos da Europa, e, de repente, acordou no meu coração uma grande e sagrada inveja.
- Como poderia existir uma cópia, e qual a finalidade da sua existência? Eu amo e só posso amar essa Terra que acabo de deixar, na qual perduram ainda as gotas daquele sangue, que ingrato!, derramei ao desprender-me da vida. Mas nunca, nunca deixei de amar a nossa Terra, e talvez até aquela noite em que a abandonei tivesse sido o momento em que a amei mais apaixonada e dolorosamente! Existe também a dor nesta nova Terra? Será que, na nossa, só podemos viver com a dor ou graças a ela? Não sabemos amar de outro modo nem conhecemos outro amor. Eu quero dor para poder amar. Quero, sim, neste momento apenas anseio por poder beijar, banhado em lágrimas, a Terra que abandonei! E não quero, não aceito nenhuma outra vida senão a da nossa Terra!
Mas o meu companheiro já me tinha deixado. Tinha chegado, sem me ter apercebido, àquela outra Terra, à clara luz solar de um dia de paradisíaca beleza. Creio que me encontrava numa daquelas ilhas que formam o arquipélago helênico, se não era, porventura, algum ponto da costa que ali circunda o mar Egeu. Oh! Era tudo tal como entre nós, simplesmente tudo parecia encontrar-se numa disposição firme e resplandecer numa grande vitória, santa e finalmente conquistada. O mar suave, de um azul-escuro, batia suavemente contra o litoral e cingia-se contra ele com um imenso, visível e quase inconsciente amor. As árvores sombrias apareciam em todo o esplendor da floração, e estou convencido de que as suas folhas inumeráveis me davam as boas-vindas com o seu leve e amistoso sussurro, murmurando-me ignoradas palavras de amor. A relva ostentava uma verdura muito fresca e brilhante; os pássaros cruzavam em bandos pelo ar, e os passarinhos pousavam-me, sem ponta de medo, nos ombros e nos braços, e davam-me alegres pancadinhas com as suas asinhas trêmulas, e, finalmente, eu olhava e reconhecia também os homens daquela Terra feliz. As pessoas chegavam-se a mim espontaneamente; rodeavam-me e davam-me beijos. Eram filhos do Sol, filhos do seu Sol... Oh, e como eram bonitos! Nunca eu vi na nossa Terra homens tão belos. Quando muito poderemos encontrar nas crianças, nos seus mais tenros anos, um reflexo fraco e longínquo de semelhante formosura. Esses homens felizes tinham rostos claros e cheios de luz. No seu rosto transparecia a inteligência e um saber que, permita-se a expressão, parecia completo até à tranqüilidade, e, no entanto, esses rostos respiravam um alvoroço especial; tanto as palavras como a voz desses homens demonstravam uma alegria pueril. Oh, ao primeiro olhar que pousei naqueles rostos, compreendi logo tudo, tudo! Aquela era a Terra, a Terra não manchada pelo pecado original, na qual viviam homens que não tinham pecado, e viviam num Paraíso idêntico àquele em que, segundo todas as tradições da Humanidade, viveram os nossos primeiros pais antes da “queda”, sem a mínima diferença, a não ser que a Terra toda era, por todo lado, um só Paraíso. Aqueles homens aproximavam-se de mim com afetuosidade, sorriam-me e acariciavam-me; conduziam-me ao seu lar e todos se esforçavam, à porfia, por me tranqüilizarem. Oh!, não me faziam pergunta alguma; pareciam saber de tudo, e só ansiavam por afugentar, o mais depressa possível do meu rosto, todo vestígio de dor.

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