domingo, 30 de agosto de 2009

III

DIZIA EU que me deixara adormecer sem dar por isso, parecia-me que não fazia outra coisa senão continuar meditando acerca desses problemas. De repente, pego no revólver – isto é, pareceu-me que pegava nele em sonhos, que o aponto ao coração, ao coração e não à cabeça, quando afinal eu decidira antes meter um tiro na cabeça, irrevogavelmente na cabeça, e, para melhor precisão ainda, na fonte direita. Depois de apoiar o cano contra o peito, esperei um segundo, apenas um segundo, e a luz, a mesa e a parede começaram de repente a cair-me por cima e a dançar. Apertei rapidamente o gatilho.
Costumamos sonhar às vezes que nos despenhamos de uma grande altura ou que nos matam ou nos batem, mas não sentimos nenhuma dor, nesses casos, a menos que uma pessoa se magoe na cama: nesse caso, sim, sentimos uma dorzinha que nos acorda. Pois foi isso mesmo o que me aconteceu no meu sonho de então: não senti dor, mas pareceu-me que, por causa do tiro, tudo de mim...se tinha partido e de repente se desfazia, e tudo à minha volta ficava mergulhado numas trevas pavorosas. Quedei-me, quase cego e mudo, e compreendi que estava estendido sobre qualquer coisa dura, de boca para cima, e não via nada nem podia fazer o menor movimento. E a minha volta passavam pessoas, que gritavam, ouvia a voz de baixo do capitão e a vozinha de soprano da dona da casa, e, de repente, outra pausa... e começam a colocar-me no caixão, e sinto como os portadores do meu ataúde cambaleiam ao caminhar, e ponho-me a pensar nisso, e de repente tomo pela primeira vez consciência de que estou morto, de que sou um defunto, do que não tenho a mínima dúvida, que não vejo nem posso mover-me, se bem que, apesar de tudo, sinta e pense. Mas não tarda que me resigne, e, como costumamos fazer nos sonhos, aceito a realidade sem ripostar.
Mas eis que me arrojam a uma cova profunda e me enterram. Todos se retiram e fico ali sozinho, completamente só, o que pode dizer-se absolutamente sozinho. Dantes, quando me punha a pensar no dia em que me enterrassem, a idéia do sepulcro estava unicamente unida a uma sensação de umidade e de frio. E assim era também agora, eu sentia muito frio, sobretudo nas pontas dos dedos, mas, além disso, não sentia mais nada.
Jazia no sepulcro e, coisa estranha... não esperava nada, pois aceitava sem contradição a idéia de que um morto nada tem que esperar. Mas aquilo estava muito úmido. Não sei, entretanto, que tempo teria decorrido: se uma hora, se alguns ou muitos dias. Quando, de repente... me vem bater no olho esquerdo, que tinha fechado, uma gotinha de água fria, que se tinha infiltrado pela tampa do caixão, decorreu um minuto e uma segunda gota me salpicou, depois uma terceira, e assim sucessivamente, sempre, de minuto em minuto. Isso produziu-me uma contrariedade violenta, e de repente senti uma dor física no coração. “É a ferida – pensei - , foi aí que a bala se alojou”. Mas o gotinha continuava a cair a cada minuto e sempre exatamente no meu olho esquerdo. E então gritei, não com a minha voz, visto que não podia fazer movimento algum, mas com todo o meu ser, para o autor de tudo aquilo que me sucedia:
- Ó quem quer que sejas, se é que existes e que há alguma coisa de mais razoável do que aquilo que me sucede, ordena-lhe também que imponha aqui o seu domínio. Mas se queres castigar-me pelo meu insensato suicídio com a insensatez de continuar a existir, fica sabendo que nada do que me esteja reservado pode comparar-me com o desprezo que eu sentirei em silêncio, ainda que a minha tortura e o meu martírio possam durar milhões de anos.
Gritei assim e depois calei-me. Teria durado perto de um minuto aquele profundo silêncio e, passado esse tempo, tornou a cair sobre o meu olho fechado a já costumada gota, mas eu sabia, sabia de um modo infinito e inquebrantável, que tudo iria mudar imediatamente. E eis que, de súbito, se abre o meu sepulcro. Isto é, eu não sei ao certo se me o teriam aberto, o certo é que um ser obscuro, e para mim desconhecido, se apoderou de mim, e partimos ambos para os espaços interplanetários. E de repente recuperei a vista, era noite, noite profunda, e nunca, nunca eu tinha visto obscuridade semelhante. Atravessamos os espaços siderais, já muito longe da Terra. Não fiz pergunta alguma ao meu condutor, esperava e sentia um orgulho imenso. Assegurei-me de que não tinha medo e quase desfalecia de gozo ao pensar que não o tinha. Não sei quanto tempo teríamos voado assim pelos espaços, nem consigo imaginá-lo bem, tudo aquilo aconteceu como costumam acontecer as coisas nos sonhos, ultrapassando as lei da razão, o espaço e o tempo, e ficando tudo limitado àquilo que o nosso coração sonha. Lembro-me de que, de súbito, no meio daquelas trevas divisei uma luzinha.

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