domingo, 30 de agosto de 2009

Nunca vi dor nem lágrimas à cabeceira dum moribundo, mas um amor exaltado até ao êxtase, até um fervor tranqüilo e puro. Poder-se-ia quase acreditar que até depois da morte continuavam em comunicação com os seus mortos, e que ela não interrompia a sua vida terrena. Mal me compreendiam quando eu os interrogava acerca da vida eterna; mas, pelos vistos, estavam tão convencidos da sua existência que nem por um momento se lembravam de pô-la em dúvida. Não tinham templos, mas mantinham-se numa identificação vital com o Todo; não professavam crença alguma, mas possuíam a convicção de que, quando as suas alegrias terrenas tivessem alcançado os limites da natureza terrena, viria para todos eles, tanto para os vivos como para os mortos, um mais íntimo contato com o Todo. Aguardavam alegremente esse momento, mas não ansiavam por que chegasse nem sofriam por causa disso, tinham já como que o seu gozo antecipado na sua alma, e comunicavam-no entre si uns aos outros. À noite, antes de adormecerem, cantavam em coros harmoniosos. Exprimiam nessas canções vespertinas os sentimentos que experimentavam durante o dia, e gabavam e estimavam o dia que tinha passado, despedindo-se dele. Louvavam a Natureza, a Terra, o mar e os bosques. Louvavam-se e elogiavam-se mutuamente nas suas canções, da mesma maneira que se louvam as crianças; as suas canções eram singelas, mas punham nelas o seu coração e aos corações elas chegavam. E não só nas suas canções, mas na sua vida toda, não faziam outra coisa senão amarem-se uns aos outros. Era, na verdade, uma vida de amor recíproco, uma vida grande, universal amor. Mas alguns dos seus cânticos, que tinham uma expressão triunfal e inspirada, não consegui compreende-los. Por mais que entendesse a sua letra, não podia penetrar todo o seu sentido. Eram intangíveis para a minha razão, ainda que cada vez penetrassem mais fundo no meu coração, sem que eu pudesse aperceber-me do que se passava. Costumava dizer-lhes que já anteriormente eu tinha adivinhado tudo aquilo; que já na nossa Terra o pressentimento de toda aquela aventura, daquele jubiloso cântico de louvor, me tinha feito experimentar um entusiasmo estéril e às vezes excessivo; que tudo aquilo eu o tinha visto já nos sonhos da minha alma e nos meus sentidos; que lá longe, na nossa Terra, por mais de uma vez me arrancara lágrimas o pôr do Sol; que sempre tinha havido dor no meu ódio aos homens da nossa Terra. Por que não podia eu odiá-los, visto que não os amava; por que não podia perdoar-lhes, por que me fazia sofrer amá-los, por que podia amá-los odiando? Eles me escutavam, e eu via claramente que não podiam imaginar nada disto, mas não me arrependia de ter-lhes falado nessas coisas; sabia que eles compreendiam todo o poder da minha nostalgia por aqueles a quem tinha abandonado. Sim, quando eu sentia pousar-se em mim o seu diáfano e aprazível olhar, trespassado de amor, sentia como entre eles também o meu coração se tornava puro e inocente como o seu, não lamentava não poder entende-los. Faltava-me o alento, por sentir tão intensamente a plenitude da vida, e ficava em silêncio adorando-os.
Oh! toda a gente se ri agora na minha cara e me afirma que não pode ver-se nada semelhante ao que estou descrevendo; que, no meu sonho, mais não fiz do que experimentar um sentimento elaborado pelo meu próprio coração e que todos esses pormenores os devia ter arquitetado depois, já desperto. E quando concordei e disse que podia ser que tivessem razão... sabe Deus as gargalhadas, a hilaridade que as minhas palavras provocavam. Naturalmente, eu estava apenas dominado pelo sentimento do sonho, e só este único sentimento perdurava no meu coração, que sangrava. Mas, além disso, as visões e as figuras reais do meu sonho, isto é, aquelas que eu vira precisamente durante a hora do meu sonho, conservavam entre si tal harmonia, eram tão perfeitas, tão encantadoras, sedutoras e belas, que, ao acordar, como é natural, não era capaz de tornar a dar-lhes vida na nossa pobre linguagem. Por isso tiveram, naturalmente, que empalidecer na minha consciência e desvanecerem-se, e talvez por isso me sentisse realmente obrigado a imaginar depois inconscientemente os pormenores, aos quais teria encomendado decididamente a missão de reproduzir, dado o meu apaixonado desejo, que era, de certo modo pelo menos, o sentimento principal. Mas, no entanto, por que não acreditar que tudo foi real? Pode ser que fosse mil vezes melhor, mais radiante e belo do que eu descrevo. Pode ser que fosse um sonho, mas não é possível que o fosse completamente. Olhem, vou confiar-lhes um segredo: talvez tudo isso nem sequer de longe fosse um sonho. Pois sucedeu nisto algo do gênero, algo tão real até à saturação, que uma pessoa nem sequer teria podido sonha-lo! Pode ser que fosse a minha alma que engendrasse esse sonho; mas como poderia ela ter engendrado sozinha essa terrível verdade que eu senti mais tarde? Como teria podido eu imagina-la ou sonha-la o meu coração sozinho? Seria possível que o meu insignificante coraçãozinho e a minha humilde e caprichosa razão tivessem podido ascender a semelhante revelação da verdade? Oh!, julguem os senhores por si mesmos; até este momento não falei no caso, mas agora vou dizer a verdade toda.
A conclusão foi eu ter.... estragado tudo aquilo.

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