domingo, 30 de agosto de 2009

IV

AGORA VEJAM: admitamos que tudo isso foi apenas um sonho. Mas a sensação de amor, que aqueles homens belos e inocentes me demonstraram, perdura em mim através do tempo, e eu sinto como esse amor, já distante, tomba sobre mim. Vi-os, conheci-os, amei-os, e, mais tarde, sofri por eles. Oh! compreendo, e compreendi-o desde o primeiro instante, que eu não poderia entende-los em muitas coisas; parecia-me incompreensível, como parece aos progressistas russos contemporâneos e aos maus petersburgueses, o fato de, sabendo eles tanto como sabiam, não possuírem a nossa ciência. Mas não tardei a comprovar que a sua ciência se nutria de conhecimentos diferentes dos da Terra, e que as suas preocupações eram também de outra índole. Não tinham desejos; estavam tranqüilos e contentes; não aspiravam, tanto como nós, a conhecer a vida, pois a sua vida estava completamente preenchida. Mas o seu saber era mais fundo e elevado que a nossa ciência, porque a nossa ciência procura explicar a vida, pretende ser ela mesma a cimentá-la, para mostrar aos homens como devem viver, e isto compreendi-o eu, ao passo que eles já sabem como hão de viver, e isto percebo eu, ainda que não possa compreender a sua ciência. Mostravam-me eles as suas árvores, mas eu não podia sentir do mesmo modo que eles a grandeza do amor com que contemplavam: tal como se as tais árvores fossem homens. E vejam: pode ser que não me engane ao dizer que até falavam com elas. Sim, conheciam a sua língua e estou convencido de que as árvores os entendiam. E olhavam da mesma maneira todo o resto da Natureza e os animais que pacificamente viviam com eles, e, longe de atacá-los, amavam-nos, vencidos pelo seu amor. Apontavam para os outros e diziam-me qualquer coisa que eu não compreendia; mas estou convencido de que estavam em relações com as estrelas do Céu, não por meio do pensamento, mas de outro modo. Oh!, aqueles homens não se esforçavam para que eu os compreendesse; amavam-se sem necessidade disso; mas, além disso, eu sabia que tampouco eles me compreenderiam jamais, e por isso nunca lhes falei da nossa Terra. Limitava-me a beijar diante deles a Terra em que viviam, e a adorá-la, e eles viam isto e deixavam que eu o fizesse, sem dizerem nada, sem se envergonharem de que eu a amasse ao mesmo tempo que eles. Não sofriam por minha causa, quando, arrasado em pranto, lhes beijava os pés, pois sabia o amor com que me o pagavam. Às vezes perguntava a mim próprio, admirado: como poderiam eles ofender, uma vez que fosse, um homem como eu, ou como poderiam suscitar tampouco em mim um sentimento de inveja ou de ciúme? Às vezes perguntava também a mim próprio como é que eu, como se fosse um embusteiro e enganador, não lhes comunicava alguns dos meus conhecimentos, de que, naturalmente, não tinham a menor idéia, para faze-los cair no espanto, ou simplesmente por amor deles... Eram bonacheirões e joviais como crianças. Vagueavam por entre os seus bosquezinhos magníficos e floridas pradarias, entoando lindas canções, e sustentavam-se dos frutos das árvores e do leite dos animais que os acompanhavam. Preocupavam-se pouquíssimo com a alimentação e com o vestuário. O amor existia também entre eles e geravam filhos; mas nunca verifiquei que fossem vítimas desses arrebatamentos de cruel lascívia, que se apoderam de quase todos os homens desta nossa Terra, de todos, sem exceção de nenhum, e que constitui a única origem de quase todos os pecados da nossa humanidade. Alegravam-se com os recém-nascidos, como novos co-participantes da sua felicidade. Não conheciam nem a luta nem a inveja, e nem sequer sabiam o que isso fosse. Os filhos dos outros eram também seus filhos, pois formavam todos uma só família. Quase não tinham doenças, contando com a morte; e os seus velhos extinguiam-se suavemente, como se dormissem, rodeados dos seres queridos, deitando bênçãos, sorrindo e acompanhados pelos seus olhares claros e alegres.

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