domingo, 26 de dezembro de 2010

Reflexão sobre o professor esfaqueado...‏

Foi uma tragédia fartamente anunciada. Em milhares de casos, desrespeito. Em outros tantos, escárnio. Em Belo Horizonte, um estudante processa a escola e o professor que lhe deu notas baixas, alegando que teve danos morais ao ter que virar noites estudando para a prova subsequente. (Notem bem: o alegado “dano moral” do estudante foi ter que... estudar!). A coisa não fica apenas por aí. Pelo Brasil afora, ameaças constantes. Ainda neste ano, uma professora brutalmente espancada por um aluno. O ápice desta escalada macabra não poderia ser outro. O professor Kássio Vinícius Castro Gomes pagou com sua vida, com seu futuro, com o futuro de sua esposa e filhas, com as lágrimas eternas de sua mãe, pela irresponsabilidade que há muito vem tomando conta dos ambientes escolares. Há uma lógica perversa por trás dessa asquerosa escalada. A promoção do desrespeito aos valores, ao bom senso, às regras de bem viver e à autoridade foi elevada a método de ensino e imperativo de convivência supostamente democrática. No início, foi o maio de 68, em Paris: gritava-se nas ruas que “era proibido proibir”. Depois, a geração do “não bate, que traumatiza”. A coisa continuou: “Não reprove, que atrapalha”. Não dê provas difíceis, pois “temos que respeitar o perfil dos nossos alunos”. Aliás, “prova não prova nada”. Deixe o aluno “construir seu conhecimento.” Não vamos avaliar o aluno. Pensando bem, “é o aluno que vai avaliar o professor”. Afinal de contas, ele está pagando... E como a estupidez humana não tem limite, a avacalhação geral epidêmica, travestida de “novo paradigma” (Irc!), prosseguiu a todo vapor, em vários setores: “o bandido é vítima da sociedade”, “temos que mudar ‘tudo isso que está aí’; “mais importante que ter conhecimento é ser ‘crítico’.” Claro que a intelectualidade rasa de pedagogos de panfleto e burocratas carreiristas ganhou um imenso impulso com a mercantilização desabrida do ensino: agora, o discurso anti-disciplina é anabolizado pela lógica doentia e desonesta da paparicação ao aluno–cliente... Estamos criando gerações em que uma parcela considerável de nossos cidadãos é composta de adultos mimados, despreparados para os problemas, decepções e desafios da vida, incapazes de lidar com conflitos e, pior, dotados de uma delirante certeza de que “o mundo lhes deve algo”. Um desses jovens, revoltado com suas notas baixas, cravou uma faca com dezoito centímetros de lâmina, bem no coração de um professor. Tirou-lhe tudo o que tinha e tudo o que poderia vir a ter, sentir, amar.






Ao assassino, corretamente , deverão ser concedidos todos os direitos que a lei prevê: o direito ao tratamento humano, o direito à ampla defesa, o direito de não ser condenado em pena maior do que a prevista em lei. Tudo isso, e muito mais, fará parte do devido processo legal, que se iniciará com a denúncia, a ser apresentada pelo Ministério Público. A acusação penal ao autor do homicídio covarde virá do promotor de justiça. Mas, com a licença devida ao célebre texto de Emile Zola, EU ACUSO tantos outros que estão por trás do cabo da faca:





EU ACUSO a pedagogia ideologizada, que pretende relativizar tudo e todos, equiparando certo ao errado e vice-versa;



EU ACUSO os pseudo-intelectuais de panfleto, que romantizam a “revolta dos oprimidos” e justificam a violência por parte daqueles que se sentem vítimas;



EU ACUSO os burocratas da educação e suas cartilhas do politicamente correto, que impedem a escola de constar faltas graves no histórico escolar, mesmo de alunos criminosos, deixando-os livres para tumultuar e cometer crimes em outras escolas;



EU ACUSO a hipocrisia de exigir professores com mestrado e doutorado, muitos dos quais, no dia a dia, serão pressionados a dar provas bem tranqüilas, provas de mentirinha, para “adequar a avaliação ao perfil dos alunos”;



EU ACUSO os últimos tantos Ministros da Educação, que em nome de estatísticas hipócritas e interesses privados, permitiram a proliferação de cursos superiores completamente sem condições, freqüentados por alunos igualmente sem condições de ali estar;



EU ACUSO a mercantilização cretina do ensino, a venda de diplomas e títulos sem o mínimo de interesse e de responsabilidade com o conteúdo e formação dos alunos, bem como de suas futuras missões na sociedade;



EU ACUSO a lógica doentia e hipócrita do aluno-cliente, cada vez menos exigido e cada vez mais paparicado e enganado, o qual finge que não sabe que, para a escola que lhe paparica, seu boleto hoje vale muito mais do que seu sucesso e sua felicidade amanhã;



EU ACUSO a hipocrisia das escolas que jamais reprovam seus alunos, as quais formam analfabetos funcionais só para maquiar estatísticas do IDH e dizer ao mundo que o número de alunos com

segundo grau completo cresceu “tantos por cento”;



EU ACUSO os que aplaudem tais escolas e ainda trabalham pela massificação do ensino superior, sem entender que o aluno que ali chega deve ter o mínimo de preparo civilizacional, intelectual e moral, pois estamos chegando ao tempo no qual o aluno “terá direito” de se tornar médico ou advogado sem sequer saber escrever, tudo para o desespero de seus futuros clientes-cobaia;



EU ACUSO os que agora falam em promover um “novo paradigma”, uma “ nova cultura de paz”, pois o que se deve promover é a boa e VELHA cultura da “vergonha na cara”, do respeito às normas, à autoridade e do respeito ao ambiente universitário como um ambiente de busca do conhecimento;



EU ACUSO os “cabeças–boas” que acham e ensinam que disciplina é “careta”, que respeito às normas é coisa de velho decrépito,



EU ACUSO os métodos de avaliação de professores, que se tornaram templos de vendilhões, nos quais votos são comprados e vendidos em troca de piadinhas, sorrisos e notas fáceis;



EU ACUSO os alunos que protestam contra a impunidade dos políticos, mas gabam-se de colar nas provas, assim como ACUSO os professores que, vendo tais alunos colarem, não têm coragem de aplicar a devida punição.



EU VEEMENTEMENTE ACUSO os diretores e coordenadores que impedem os professores de punir os alunos que colam, ou pretendem que os professores sejam “promoters” de seus cursos;



EU ACUSO os diretores e coordenadores que toleram condutas desrespeitosas de alunos contra professores e funcionários, pois sua omissão quanto aos pequenos incidentes é diretamente responsável pela ocorrência dos incidentes maiores;



Uma multidão de filhos tiranos que se tornam alunos-clientes, serão despejados na vida como adultos eternamente infantilizados e totalmente despreparados, tanto tecnicamente para o exercício da profissão, quanto pessoalmente para os conflitos, desafios e decepções do dia a dia. Ensimesmados em seus delírios de perseguição ou de grandeza, estes jovens mostram cada vez menos preparo na delicada e essencial arte que é lidar com aquele ser complexo e imprevisível que podemos chamar de “o outro”. A infantilização eterna cria a seguinte e horrenda lógica, hoje na cabeça de muitas crianças em corpo de adulto: “Se eu tiro nota baixa, a culpa é do professor. Se não tenho dinheiro, a culpa é do patrão. Se me drogo, a culpa é dos meus pais. Se furto, roubo, mato, a culpa é do sistema. Eu, sou apenas uma vítima. Uma eterna vítima. O opressor é você, que trabalha, paga suas contas em dia e vive sua vida. Minhas coisas não saíram como eu queria. Estou com muita raiva. Quando eu era criança, eu batia os pés no chão. Mas agora, fisicamente, eu cresci. Portanto, você pode ser o próximo.” Qualquer um de nós pode ser o próximo, por qualquer motivo. Em qualquer lugar, dentro ou fora das escolas. A facada ignóbil no professor Kássio dói no peito de todos nós. Que a sua morte não seja em vão. É hora de repensarmos a educação brasileira e abrirmos mão dos modismos e invencionices. A melhor “nova cultura de paz” que podemos adotar nas escolas e universidades é fazermos as pazes com os bons e velhos conceitos de seriedade, responsabilidade, disciplina e estudo de verdade.





Igor Pantuzza Wildmann



Advogado – Doutor em Direito. Professor universitário.

sábado, 25 de dezembro de 2010

Decepções

Hoje passei por dois momentos que me chatearam, como sempre chateiam quando vivencio situações parecidas. O pior é que foi basicamente a mesma coisa em dois lugares diferentes: comentários sobre homossexuais.
Fico ouvindo as pessoas falarem não ter nada contra quem é homossexual ou bissexual, mas no fundo, às vezes até nem tão no fundo, o preconceito está ali. Logo após ouvir o "eu não tenho nada contra, não é por isso que eu deixaria de gostar da pessoa ou de ser amigo dela" vem o "mas eu não quero ficar sozinho perto de fulano, porque descobri que ele é gay..." e por ai vai.. tudo dai pra baixo.
Por que as pessoas não admitem que são SIM preconceituosas e MUITO?? Isso me irrita tremendamente.
Acho que hoje em dia, muitas pessoas são apenas mais polidas quando se trata desse assunto porque, agora, é politicamente incorreto falar mal de pessoas com outras preferências sexuais, ou de crença, etc. Mas em muitos casos isso só acontece por isso mesmo: porque é politicamente incorreto falar mal ou assumir que não gosta daquilo que é visto como minoria, ou como diferente.. no fundo o preconceito continua existindo, as pessoas continuam, de alguma forma, segregando os que são diferentes ou que julgam ser diferentes.. e dão a isso outras desculpas, que não a do preconceito.
Eu não digo que eu não tenha preconceitos também, eu os tenho porque é algo muito arraigado.. nascemos em uma sociedade repleta de preconceitos e temos a escolha de combatê-los ou de aceitá-los e perpetuá-los.. então, desde muitos anos, eu tenho me esforçado em combater os preconceitos que me foram legados pela nossa sociedade e pela nossa cultura. Hoje, na maioria dos casos, eu faço isso de forma automática, a ponto de achar absurdo quando percebo o preconceito no outro.. mas não é fácil, eu sei.. sei que é difícil, pra muita gente, combater uma forma de pensar que foi herdada de outras gerações, mas também sei que isso não é desculpa para não se tentar melhorar e para continuar cometendo os mesmos erros que nossos pais, avós, bisavós, etc cometeram.
Quantas gerações ainda serão necessárias para que ter preconceito contra algo ou alguém seja a acessão à regra, e não a regra em si??


                                          

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

Observações interessantes... para mim pelo menos heheheh

Eu comecei a ler, cerca de  4 dias atrás, um livro sobre o Romantismo, assunto que muito me interessa.. e resolvi postar aqui um trecho relativamente longo, mas com o qual eu concordo, em especial nas partes que destaquei em negrito. Fora isso, queria fazer uma observação sobre o Goethe e o Schiller, ao contrário do que eu disse no último post, se não me engano, eles não parecem ser apenas cabeçudos.. por algumas coisas que li nesse livro parece-me que eles eram meio brincalhões, às vezes.. hehe (me sentiria mal se não relativizasse o que disse, mesmo sabendo que isso pouco importa).
Lá vai o trecho ao qual me referi:

“(...)


Mais ou menos na mesma época em que Goethe escolhe a literatura como salvação contra a revolução e os românticos ainda a celebram com entusiasmo, Schiller sente-se por ela coagido a criar uma teoria estética moderna. Ele se transforma no iniciador das subsequentes tentativas românticas de incluir a revolução no mundo filosófico-literário, não apenas como tema, mas também como princípio produtivo. Em outras palavras: a teoria schilleriana do jogo, de 1794, é o prelúdio da revolução literária romântica em torno de 1800.

Schiller também tinha, inicialmente, abraçado a revolução, mas então sentiu-se repelido pelo modo como esta se desenrolou. Pouco antes dos assassinatos do mês de setembro de 1792 — quando quase duas mil pessoas foram abatidas pela plebe parisiense, depois de o rei ter sido executado —, ele havia começado a conceber uma terapia estética que deveria ajudar a tornar as pessoas aptas à liberdade. Que elas não o são, segundo Schiller, havia sido provado suficientemente pêlos excessos da revolução: "instintos sem lei e brutos" teriam sido liberados "depois da dissipação da ordem social", e se teriam "apressado com ira incontrolável em direção à sua satisfação animal”. Não eram, pois, homens livres que haviam sido oprimidos pelo Estado. Não. Eram apenas animais selvagens que ele havia colocado em correntes curadoras. Como resposta à Revolução Francesa, Schiller faz a ousada tentativa de superar a França revolucionária com uma revolução alternativa, uma revolução do espírito. Somente o jogo das artes, para ele, poderia verdadeiramente tornar o homem livre. Em primeiro lugar interiormente, e mais tarde — quando a situação na Alemanha tivesse amadurecido — também exteriormente. Ele colocava grande esperança no efeito libertador da arte e da literatura. A primeira geração dos românticos irá se apoiar nessa valorização ímpar do estético.

Schiller denomina a Revolução Francesa um momento frutífero que aconteceu a uma raça infértil. Infértil porque não era livre por dentro. Mas o que significa ser livre por dentro? Não devemos ser dependentes dos desejos; não importa se os perseguimos de maneira crua e primitiva ou com o refinamento da civilização. De qualquer maneira, o homem permanece sob o comando da natureza, sem poder controlar a si próprio. Mas não vivemos nós numa era do Iluminismo e da ciência, num período do florescimento do espírito livre e pesquisador? Não, diz Schiller, não se deve superestimar as atuais conquistas. O Iluminismo e a ciência se mostraram apenas como urna cultura teórica, uma coisa externa para bárbaros por dentro. A razão pública ainda não tocou o âmago da pessoa, nem o transformou. O que deve ser feito? O único caminho para a libertação do homem interior não é a luta política pela liberdade exterior? Só se aprende a liberdade quando se luta politicamente por ela. É isso pelo menos que Fichte e outros amigos da liberdade vão opor contra Schiller, que rejeita o conceito do learning by doing, como se diria hoje em dia. Seu argumento é: quando se enfraquece ou até mesmo se desfaz muito cedo a garra autoritária do Estado (do Estado natural) por meio da luta política, as consequências inevitáveis são a anarquia e a multiplicada violência e arbitrariedade dos egoísmos: A sociedade livre, em vez de projetar-se em direção à vida orgânica, tomba de volta ao elementar. Tem-se de, no lugar disso, abrir ao homem um campo de exercício da liberdade; tem-se de — enquanto o Estado natural ainda persiste em garantir a existência física do homem — criar os fundamentos espirituais sobre os quais se pode criar futuramente o Estado livre. Não se pode primeiro destruir o mecanismo do Estado e em seguida querer inventar um novo; tem-se, pelo contrário, de trocar a roda enquanto em movimento.

Mas por que essa troca da roda em movimento — essa revolução na maneira de pensar — poderia ser gerada exatamente pela arte e pelo trato com ela? Porque é através da beleza que se chega à liberdade. Pode-se certamente dizer — e Schiller o faz — que a bela arte educa e aprimora os sentimentos. Essa seria a sua contribuição à civilização. Mas ele não se dá por satisfeito com isso. O mundo estético não é apenas um campo de exercício para o refinamento e enobrecimento dos sentimentos, mas o lugar onde o homem se torna explicitamente aquilo que ele sempre é implicitamente: um homo ludens.

É apenas na décima quinta das suas cartas, Sobre a educação estética do homem [Über die ästhetische Erziehung des Menschen], que se encontra aquela frase na qual culmina o teor desse tratado, e da qual tudo advém que é importante para Schiller em relação ao belo na arte. Trata-se de uma tese cultural e antropológica com vastas consequências para a compreensão da cultura em geral e do moderno em especial: uma tese com a qual Schiller justifica bem sua exigência de curar a doença da cultura pela educação estética. Essa famosa tese é: "Para dizê-lo de uma vez por todas, o ser humano brinca apenas onde ele corresponde plenamente ao conceito do ser humano, e ele é apenas completamente humano quando brinca.”

Que jogos? Naturalmente que para ele são primordialmente os jogos da bela literatura e da arte. Mas insinua que nisso toda a civilização está em jogo — porque ela mesma também é um jogo, isto é, uma instituição que transforma um número possivelmente grande de casos sérios em ações lúdicas que os substituem, ou pelo menos possibilitam um trato distanciado com eles. Schiller é um dos primeiros a mostrar que o caminho da natureza para a cultura passa pelo jogo — e isso significa rituais, tabus, simbolizações. A seriedade dos instintos — sexualidade, agressão, concorrência e inimizade — e os medos da morte e da doença e do declínio perdem algo da sua força subjugadora e limitadora da liberdade. Assim, a sexualidade é sublimada como jogo do erotismo, com o que ela para de ser apenas animal e se torna verdadeiramente humana. A isso pertencem então os disfarces, artimanhas, o adorno e as ironias no jogo, através dos quais ocorre aquela magnífica duplicação: gozar o gozo, sentir o sentimento, amar a paixão; ser ao mesmo tempo ator e espectador. Tal jogo é que permite a intensificação refinada, enquanto o desejo se apaga na satisfação e com isso se direciona funestamente ao ponto morto: post coitum omne animal triste. A sexualidade é desejo e proliferação. O erotismo, porém, abre todo um mundo de significados.



O jogo abre espaços livres. Isso também vale para a violência. A cultura tem de contar com ela e com ela "jogar", por exemplo, na competição ritualizada, na concorrência, nas disputas de oradores. O universo simbólico da cultura oferece um alívio no que concerne aos casos sérios de morte e extermínio mútuo. Ele torna a vida dos homens em comunidade — esses animais perigosos — vivível. A máxima da cultura é: onde existia seriedade, deve haver jogo.

Evidentemente teremos de continuar com nossos negócios seriamente, atando relações e cuidando delas, arcando com nossas tarefas. Mas tudo depende de estabelecermos um espaço lúdico em relação aos instintos e afetos que nos dominam.

Disso também faz parte a independência em relação a meras considerações sobre a utilidade das coisas. A sociedade burguesa, diz Schiller, vive mais do que nunca sob o imperativo da utilidade. Ele a descreve como um sistema fechado da racionalidade do útil e da razão instrumental, como uma máquina social, quase como aquele invólucro de aço tal qual Max Weber a descreverá cem anos mais tarde. "A utilidade", escreve Schiller, "é o grande ídolo da época, a quem todas as forças devem alimentar e todos os talentos devem honrar. Sobre essa grande balança, o ganho espiritual da arte não tem peso nenhum, e, roubada de toda motivação, ele desaparece diante do mercado barulhento do século".

Com a ajuda da arte pode-se aprender que as coisas mais importantes da vida — o amor, a amizade, a religião e mesmo também a arte — têm a sua utilidade em si mesmas, que elas em si não fazem sentido porque funcionalmente estão a serviço de alguma outra coisa. O amor quer o amor, a amizade quer a amizade e a arte, a arte; outros fins são realizados paralelamente, é lógico, mas isso não deve ser intencional. Uma amizade calculada não é uma amizade, e uma arte em função da utilidade social também não é arte. A arte é, como todo jogo, autônoma. Ela tem regras, mas as dá a si mesma. Só pode condescender nos casos sérios, quando se leva a sério. Contrariamente à utilidade geralmente reconhecida, ela tem dentro de si seu próprio fim; é pois estática, como, por exemplo, a religião, à qual se deixa de conhecer no momento em que se a limita funcionalmente a um papel social. Só quando a arte — assim como a religião — quer a si própria pode acontecer que ela, de certa forma involuntariamente, sirva à sociedade.


A arte é, pois, em primeiro lugar jogo, em segundo autonomia e, em terceiro, ela compensa aquilo que Schiller analisa como a deformação específica da sociedade burguesa: o sistema de distribuição de empregos. Hölderlin, Hegel e mais tarde Marx, Max Weber e Georg Sirnmel vão recorrer à sua análise. Não há nenhuma perspectiva sobre a sociedade naquele tempo que tenha tido um impacto maior do que a dele. A sociedade moderna, escreve, fez progressos na área da técnica, da ciência e do artesanato em consequência da divisão de trabalho e da especialização. Na mesma proporção em que torna-se mais abastada e complexa como um todo, ela deixa que o indivíduo empobreça em relação ao desenvolvimento dos seus talentos e forças. Na medida em que o todo se mostra como uma totalidade rica, o indivíduo deixa de ser aquilo que ele, de acordo com um pressuposto idealista da Antiguidade, deveria ser: uma pessoa como pequena totalidade. Em vez disso, encontram-se entre os homens de hoje apenas fragmentos, o que faz com que se "tenha de perguntar de indivíduo a indivíduo, para reconhecer a totalidade da raça". Cada um conhece apenas seu ofício especial, seja ele um ofício material ou espiritual. A política também transformou-se num ser maquinário de especialistas do poder; ela não está mais arraigada no mundo da vida, nem é expressão orgânica do poder concentrado de indivíduos: " O prazer foi separado do trabalho, o fim do meio, o esforço da recompensa. Eternamente preso a um único pequeno fragmento do todo, o homem se forma apenas corno fragmento. Ouvindo eternamente o barulho da roda que põe em movimento, ele jamais desenvolve a harmonia do seu ser, e em vez de imprimir humanidade à sua natureza, ele é apenas uma cópia do seu negócio.”

Mas, em oposição aos sonhos de Rousseau sobre um passado melhor, Schiller insiste que "por menos que o indivíduo possa sentir-se bem sob esse esmigalhamento do seu ser, a raça não teria podido fazer progressos de outra forma". Para desenvolver a inclinação da raça como um todo, não havia aparentemente nenhum outro meio senão o de dividir os indivíduos e mesmo opô-los uns aos outros. Ele denomina o "antagonismo das forças” como o "grande instrumento da cultura", para realizar no todo social a riqueza das forças humanas e para perdê-la na grande massa dos indivíduos. Nessa análise, Hölderlin encontrará a chave para
a compreensão da sua dor em relação ao presente. Em Hipérion, ou O eremita na Grécia [Hyperion] lemos: "Você vê operários, mas nenhum ser humano; pensadores, mas nenhum ser humano [...] isso não é como o campo de batalha, onde mãos e braços e todos os membros estão misturados uns aos outros, enquanto o sangue vital escorre na areia [...] Mas isso seria suportável, não tivessem os homens que ser insensíveis em relação a toda a beleza da vida [...]"

O esmigalhamento e a mutilação explicam para Schiller porque, na França, o Iluminismo tenha se tornado pura ideologia como cultura teórica, e que finalmente até se mostre — como vemos no exemplo de Robespierre — o terror da razão, indo não apenas contra, as antigas instituições, mas também contra a crença no coração dos homens.

O jogo da arte deve — quando não superar — pelo menos compensar essa lesão cancerígena na sociedade trabalhista que torna o homem um fragmento, uma mera cópia do seu negócio. O jogo da arte estimula o homem a jogar com todas as suas forças — com a razão, o sentimento, a imaginação, a memória e a expectativa. Esse jogo livre liberta o indivíduo das limitações oriundas da divisão do trabalho. Permite a ele, que sofre por causa do esmigalhamento, tornar-se algo inteiro, uma totalidade menor, ainda que apenas no momento de tempo pré-estabelecido e na área limitada da arte. No prazer do belo, ele experimenta o gosto de uma plenitude que, tanto na vida prática quanto no mundo histórico, ainda estão por vir.

Schiller esperava pois muito da educação estética, e gerou uma até então desconhecida valorização da arte e da literatura.

A nova consciência da autonomia artística, o estímulo para o grande jogo e para a sublime inutilidade, a promessa de uma totalidade menor — tudo isso deu energia ao Romantismo, cuja primeira geração tem então sua estréia.” (SAFRANSKI, Rüdiger. Romantismo: uma questão alemã. São Paulo, Ed. Estação Liberdade, 2010, p. 41,42,43,44,45,46.)