domingo, 30 de agosto de 2009

O sonho de um homem ridículo

Colocarei, abaixo, um dos melhores contos que li em toda minha vida. Não é a toa que ele foi um gênio. Esse texto é um espetáculo, o pior é que se trata de um sonho realísticamente triste demais. ;/

O SONHO DE UM HOMEM RIDÍCULO
( NARRATIVA FANTÁSTICA )
( 1877 )


DOSTOIEVSKI

PRIMEIRO

SOU UM HOMEM ridículo. Agora já quase me têm por louco. O que significaria ter ganho em consideração, se não continuasse sendo um homem ridículo. Mas eu já não me aborreço por causa disso, agora já não guardo rancor a ninguém e gosto de toda a gente, ainda que se riam de mim... sim, senhor, agora, não sei por quê, mas sinto por todos os meus próximos uma ternura especial. Teria muito gosto em acompanhá-los no vosso riso... não precisamente nesse riso à minha custa, mas sim pelo carinho que me inspiram, se não me fizesse tanta pena vê-los. É pena que não saibam a verdade. Oh, meu Deus! quanto custa isso de ser um só a saber a verdade! Mas isto não compreendem eles. Não, nunca compreenderiam isto.
A princípio fazia-me sofrer muito a idéia de parecer ridículo. Não o parecê-lo, mas o sê-lo. Eu sempre fui ridículo, e eu já o sabia talvez desde que nasci. Talvez já aos sete anos eu me apercebesse perfeitamente de que era ridículo. Depois fui para a escola, e a seguir para a Universidade, mas... quanto mais aprendia, mais obrigado me via a reconhecer a minha condição de criatura ridícula. De maneira que todos os meus estudos universitários não tinham outro objetivo senão o demonstrarem-me e explicarem-me a mim próprio, nas minhas meditações, que eu era um ser ridículo. E, na vida, acontecia-me o mesmo com a ciência. Todos os anos aumentava e se fortalecia em mim o conhecimento da minha condição ridícula, em todos os sentidos. Toda a gente se ria de mim. Mas ninguém sabia, nem suspeitava sequer, que, se existia no mundo um homem que soubesse melhor do que todos eles como eu era ridículo, esse homem era era eu próprio. E era precisamente isso o que mais me enraivecia: que não soubessem. Mas disso tinha eu a culpa. Fui sempre tão orgulhoso que por nada desse mundo o teria confessado a ninguém. E esse orgulho ia crescendo também em mim com os anos, e se eu me tivesse permitido confessar a alguém, fosse a quem fosse, espontaneamente, que era um homem ridículo, teria imediatamente metido um tiro na cabeça, na tarde do mesmo dia. Oh, quanto me fez sofrer, na minha mocidade, o medo de não poder talvez conter-me e de dizê-lo de repente, eu próprio, aos meus companheiros! Mas, com o andar do tempo, quando me tornei um rapazote e, apesar de continuar reconhecendo cada vez melhor todos os anos essa terrível condição minha, fui-me sentindo cada vez mais tranqüilo... não sei por quê... precisamente por alguma razão que ainda hoje ignoro. Talvez por, nessa altura, se ter introduzido na minha alma o receio perante determinado conhecimento que humanamente era mais elevado que o meu eu... e que foi a convicção adquirida de que tudo neste mundo é, afinal, uno.
Havia já muito tempo que o pressentira, mas a convicção plena só assentou no meu espírito no último ano e de uma maneira súbita. Senti de um momento para outro que para mim tudo era indiferente, que tanto me fazia que o mundo existisse como não. Pouco a pouco ia vendo e sentindo que não havia nada fora de mim. Parecia-me que, de fato, a princípio tinham existido muitas coisas, mas adivinhei igualmente depois que antes também não tinha havido nada, e que se assim me parecera foi por alguma razão. E, pouco a pouco, fui-me convencendo que daí para diante também não haveria nada. A partir dessa altura até agora deixei de preocupar-me mais com os mortais e quase e quase não voltei a dar-lhes atenção. O que não tardou a refletir-se sobre as coisas mais insignificantes, pois ocorria-me, por exemplo, quando andava pelas ruas, dar encontrões em toda a gente. E não se julgue que era por ir afundando em meditações, isso não podia ser, porque eu já tinha de pensar em tudo, tudo me era indiferente. Ainda se ao menos me tivesse entregue à resolução de problemas! Mas não, nem um só resolvi na minha vida, e, isso, havendo-os aos pontapés. Mas como tanto me fazia, os problemas afastavam-se de mim sozinhos.
E mais para adiante, de repente, soube a verdade. Soube a verdade no último mês de novembro, precisamente a três de novembro, e desde então não se apagou da minha memória nenhum pormenor da minha vida. Foi numa noite tão escura, tão escura como nunca vi outra tão tenebrosa. Voltava para casa, aí pelas onze horas da noite, e ainda me lembro que ia pensando em que não poderia haver noite mais escura e mais lôbrega. Até em sentido físico. Todo o dia havia chovido, mas uma chuva extremamente fria e aborrecida, uma chuva dessas que deprimem o ânimo a tal ponto que ainda me lembro de sentir hostilidade contra os homens. E, de repente, a chuva parou e passou a sentir-se uma umidade terrível, ainda mais úmida e mais fria que a chuva, e de todos os lados levantou-se uma espécie de névoa que surgia de cada pedra da rua e de cada esquina, quando, ao passar, uma pessoa se punha a olhar a rua de longe. Ocorreu-me de repente pensar se os lampiões se teriam se apagado, seria muito melhor, porque com as luzinhas do gás tudo se tornava mais triste, pois a luz deixava ver tudo. Eu mal comera naquele dia e desde o escurecer que tinha estado em casa dum engenheiro. Não tinha aberto a boca durante todo esse tempo e calculo que a minha presença os aborrecesse. Falavam não sei de que, e, de repente, puseram-se a altercar, enredando-se na discussão. Mas, no fundo, nada daquilo os interessava, de maneira nenhuma, isso sabia eu, e se se acaloravam era por se acalorarem. Eu, de repente, fui e disse-lhes: “Deixem-se de discussões, que isso, para vocês, vem tudo a dar no mesmo”. Eles, em vez de o levarem a mal, não fizeram mais nada senão rir-se de mim. Porque eu não lhes tinha dito aquilo em ar de censura, mas porque tudo me era indiferente. Eles percebiam claramente que para mim tudo me era indiferente e achavam graça ao caso.
Enquanto eu, pelas ruas, ia pensando na extinção dos lampiões, lembrei-me de erguer os olhos ao céu. Estava tremendamente escuro, mas distinguiam-se com toda a nitidez umas grossas nuvens claras, que por ele vogavam, desgarradas, desfeitas, e entre elas, no espaço vazio, grandes manchas negras. De súbito descobri numa dessas manchas uma estrelinha. Parei e pus-me a observá-la, atento. Fiz isso unicamente porque aquela estrelinha me sugeriu uma idéia: decidi meter um tiro no corpo nessa mesma noite. Já dois meses atrás o tinha decidido assim solenemente, e, apesar de estar tão mal de dinheiro como estava, arranjara um bonito revólver, o qual tinha carregado naquele mesmo dia. No entanto, tinham já passado dois meses e o tal revólver continuava na minha gaveta, tão indiferente me era tudo, que queria esperar por um momento em que assim não fosse, embora ignorasse o motivo desse adiamento. E, quando voltava a casa todas as noites, durante esses dois meses, julgava que ia ser essa a noite em que eu dava o tiro. Estava sempre à espera do momento. E, de repente, aquela estrelinha sugeriu-me a idéia e resolvi terminantemente meter a bala no corpo nessa noite. Não sei é por que me teria a estrelinha sugerido tal idéia.
Mas sucedeu que, enquanto olhava o céu, uma menina me acotovelou. A rua estava já deserta, completamente deserta, e não se via vivalma por aqueles arredores. Apenas ao longe um cocheiro de drójki dormia sobre a boléia. Pode ser que a tal menina tivesse apenas oito anos, trazia um vestidinho muito fino, como agasalho trazia apenas um lenço, estava completamente encharcada pela chuva, mas o que mais me chamou a atenção foram os seus sapatinhos, rotos e molhados, de tal maneira que ainda me parece estar a vê-los. Saltaram-me à vista, de um modo estranho. De repente, a pequena bateu-me no braço e gritou não sei que. Não chorava, mas proferia algumas palavras, que não podia articular bem por causa do frio, como num ladrido, e todo o corpo lhe tiritava. Estava tão assustada, era tal o seu medo, que no seu desespero não fazia mais senão balbuciar e gritar sempre o mesmo: “Mã! Mã!”. Voltei-me para olha-la, mas não disse nada e segui o meu caminho, ela deitou a correr atrás de mim, puxando-me constantemente pelo braço e gritando nesse tom que, nas crianças assustadas, denota o desespero. Conheço esse tom. Ainda que a pequenina não exprimisse claramente o seu conflito por palavras, compreendi que a mãe estaria a morrer em casa ou que ali devia ter acontecido outra desgraça horrível, e que ela saíra de casa para pedir o auxílio de algum transeunte, a fim de encontrar alguma coisa com que socorrer a mãe. Mas eu não segui na direção que ela me indicava, e até, pelo contrário, comecei a afugentá-la do meu lado. A princípio disse-lhe que ia procurar um guarda noturno. Mas ela abriu as duas mãos, implorante, e continuou a correr atrás de mim, soluçante, ansiosa. Parecia que tinha medo de perder-me. Eu então me adiantei e, de repente, bati com o pé no chão, e ela deu um grito. Gritava angustiosamente: “Meu rico senhor, meu rico senhor!...”. Mas depois parou e, de repente, deitou a correr pelo meio da rua, onde se via um vulto, deixando-me a mim para importunar outro.
Subi ao meu quinto andar. Tenho aí um quarto que aluguei a uma mulher. É um quarto miserável e pequeno, tem apenas uma clarabóia no teto. O meu mobiliário compõe-se de um divã, forrado de oleado, de uma mesa, sobre a qual tenho os meus livros, duas cadeiras e uma poltrona, esta, velha, velhíssima, mas muito cômoda. Sento-me nela, acendo a luz e ponho-me a pensar. No quarto contíguo, separado do meu apenas por um magro tabique, há já três dias que dura o rega-bofe. Vivia aí um capitão reformado, que também tinha hóspedes – seis homens. Estavam quase sempre jogando com um baralho velho e gorduroso. Nas noites anteriores bateram-se, e de dois deles sabia eu que se tinham mutuamente puxado os cabelos. A dona da casa pensou queixar-se, mas não se atreveu, por ter medo do capitão. Além dos sitos vizinhos, havia também na casa uma senhora muito franzina e magra, uma provinciana com três filhos pequenos e que lhe adoeceram já aqui. Tanto ela como as crianças tem um medo ridículo do capitão, e sempre que tem hóspedes passam a noite em claro, tremendo e persignando-se, e o menorzinho até sofre de convulsões, de tão medroso. O tal capitão, sei-o muito bem, costuma algumas vezes pedir esmola aos transeuntes do Niévski Próspekt, e não se preocupa absolutamente nada com arranjar emprego, embora – coisa estranha-, durante todo o tempo que tem estado me casa, nunca me tenha incomodado de maneira nenhuma. É certo que eu, desde o princípio, evitei o seu convívio, e que fiz todo o possível por aborrece-lo da primeira vez que veio ao meu cubículo, visitar-me, mas que gritem lá no seu quarto quanto quiserem... isso é-me indiferente. Eu passo a noite inteira sentado na minha poltrona, e, para dizer a verdade, nem os ouço... A tal ponto consigo esquecer-me deles e dos seus gritos. Mas passo toda a noite em claro... Há já um ano que isto acontece. Fico sentadinho na poltrona até que clareia, e sem fazer nada. Ler, só leio de dia. Estou sentado e nem sequer penso em nada, fico sentado tranqüilamente e deixo o pensamento vaguear. A luz consome-se numa noite. Sento-me à mesa, pego no revólver e coloco-o na minha frente. Ainda me lembro de que... quando o coloquei ali diante, perguntei a mim próprio: “Sim?” E que respondi com toda a tranqüilidade: “Sim”. Por isso decidi meter uma bala no corpo nessa mesma noite. Eu sabia que nessa mesma noite haveria de esfacelar irremediavelmente a caixa craniana, mas não sabia quanto tempo haveria de continuar ainda ali sentado até esse momento. E, não há dúvida nenhuma de que teria um tiro na cabeça nessa noite, se não fosse por causa daquela pequenina...

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