domingo, 30 de agosto de 2009

II

MAS VEJAM: apesar de tudo me ser indiferente, sentia, por exemplo, a dor, sim, a dor, senti-a. Se alguém me tivesse batido, teria sentido a dor. E o mesmo no terreno moral, se tivesse acontecido algo de triste, teria sentido piedade, tal como antes de tudo se me ter tornado indiferente. Por isso, daquela vez, senti compaixão, eu não tinha outro remédio senão prestar o meu auxílio a uma pequenina, fosse como fosse. Por que não o tinha prestado àquela? Porque, precisamente nesse momento, me ocorreu uma idéia: quando ela me puxou pelo braço e me falou, surgiu-me um problema para o qual não encontrava resposta. Era uma pergunta ociosa, mas, no entanto, aborrecia-me. Punha-me de mau-humor, devido à conclusão lógica a que eu chegara, a conclusão de que, uma vez que ia rebentar com a caixa dos miolos, tudo me devia ser indiferente. Mas por que sentiria eu então de repente que nem tudo me era indiferente e que tinha pena da pequenina? Ainda me lembro de que me inspirava uma autêntica piedade, sim, até ao ponto de sentir uma dor muito especial, inspirava-me piedade, uma dor que era absolutamente inverossímil e intempestiva, na situação em que me encontrava. Não, não consigo descrever bem o meu fugidio sentimento de então, mas esse sentimento ainda perdurava no meu espírito depois de eu ter entrado no meu quarto e depois de estar já sentado à mesa, e me encontrava tão agitado como havia muito não o estava. Uma apreciação traía a outra. No entanto é evidente que eu, apesar de ser um homem e não um zero, isto é, apesar de não me ter ainda transformado num zero, é evidente, repito, que estou vivo... e, por conseguinte, ainda posso aborrecer-me e sofrer sem sentir vergonha dos meus atos. Bem. Quanto a mim... Mas se eu, por exemplo, me mato dentro de duas horas, que pode importar-me essa pobre pequenina e que podem incomodar-me a vergonha e o mundo inteiro? Transformo-me num zero, num zero absoluto. E poderia realmente a consciência de que vou deixar de existir dentro em breve, e, por conseqüência, de que tudo vai também deixar de existir, não ter a menor influência sobre o sentimento de piedade que inspira esse ser, nem sobre o sentimento de vergonha pela brutalidade em que uma pessoa tenha incorrido? Foi só por isto que eu bati com o pé no chão e lancei aquele grito tão furioso, porque queria demonstrar que eu... não só não sentia piedade alguma como também era capaz de cometer a grosseria mais desumana, já que dali a duas horas tudo estaria acabado e que já não existiria absolutamente nada. Acreditar-me-ão se lhes disser que foi só por isso que a afugentei? Estou absolutamente convencido disso. Naquele momento era para mim absolutamente evidente que a vida e o mundo dependiam quase unicamente de mim. Posso dizer mais ainda: que o mundo, agora, parecia quase criado para mim apenas... pois quando tivesse dado o tiro, o mundo deixaria de existir, pelo menos para mim. Isto para não falar sequer de que talvez realmente não houvesse nada mais para ninguém, depois de mim, e que talvez o mundo inteiro, quando o meu conhecimento se extinguisse, se desvanecesse imediatamente como uma visão, como um simples atributo desse conhecimento meu e deixasse de existir, pois talvez todo esse mundo e todos esses homens sejam... unicamente eu mesmo. Lembro-me de que ia abandonando todas essas novas perguntas, que me assaltam uma atrás da outra, e pensava qualquer coisa completamente nova para mim. Tudo isto, sentado na minha poltrona, sempre a pensar. E, de repente, entre outros, ocorreu-me um pensamento estranho: se eu, por exemplo, tivesse vivido na Lua noutro tempo, ou no planeta Marte, e cometido aí alguma ação incrivelmente desonesta, a mais desonesta que imaginar se possa, e devido a essa ação me tivesse visto aí ultrajado e desonrado de uma maneira como só às vezes pode ver-se nos sonhos, sob o influxo de um pesadelo, e depois, na Terra, não me abandonasse a recordação daquilo que eu tivesse feito nos outros planetas, e soubesse, além disso, que jamais, fosse como fosse, havia de voltar a esses outros planetas – pergunto então: “Quando eu olhasse a Lua, cá da Terra, tudo seria para mim indiferente... ou não? Envergonhar-me-ia ou não, então, dessas minhas ações?” Essas perguntas eram ociosas ou supérfluas, visto que estava ali o revólver diante dos meus olhos, em cima da mesa, e que eu sabia de certeza absoluta que aquilo havia de acontecer infalivelmente... Mas, no entanto, essas perguntas pungiam-me e molestavam-me. Parecia-me que afinal não podia morrer sem ter, de qualquer maneira, resolvido esses problemas. Em resumo: aquela pequenina salvou-me, pois, devido àquelas perguntas, adiei a minha morte. Entretanto, no quarto do capitão reinava o silêncio, o dono da casa e os hóspedes tinham acabado de jogar e preparavam-se para dormir, embora sem deixarem de resmungar ou de insultar-se até ao fim, na sua bebedeira. E então sucedeu-me adormecer de repente, coisa que nunca antes me acontecera, sentado na poltrona, junto da mesa. Adormeci de um momento para o outro.
Como se sabe, os sonhos são uma coisa muito estranha. Percebemos neles, com uma clareza assustadora, com uma artística elaboração, certos pormenores, ao passo que passamos outros completamente por alto, como se não existissem, sucedendo assim, por exemplo, com o tempo e com o espaço. Creio que os sonhos não os sonha a razão, mas o desejo, não a cabeça, mas o coração, e, no entanto, sobre que coisas tão complicadas passa às vezes a minha razão, no sonho! Coisas absolutamente incompreensíveis. Por exemplo: há cinco anos que morreu o meu irmão, mas eu costumo vê-lo freqüentemente nos meus sonhos, toma parte em tudo quanto me interessa, falamos longamente de tudo quanto se possa imaginar, mas, ao mesmo tempo, tenho sempre a consciência e nunca me esqueço um momento que há já muito tempo que o meu irmão está morto e enterrado. Mas a que é devido o fato de eu não estranhar, de maneira nenhuma, a sua presença? Que não me espante que o morto se sente junto a mim e que me fale? Por que não se revolta a minha razão? Mas já chega. Vou agora falar-lhes do meu sonho. Sim, nesse tempo tive eu aquele sonho, o meu sonho de três de novembro. Os senhores dir-me-ão, agora, que se tratou apenas de um sonho. Mas é completamente indiferente que fosse um sonho ou não fosse, uma vez que este sonho me tivesse revelado a verdade? Porque uma vez que se reconheceu a verdade, depois que ela se vê, já sabemos que é a verdade única, que fora dela não pode haver nenhuma outra, quer estejamos adormecidos ou acordados. Pois bem: se é um sonho, por mim, admito-o. Mas essa vida, que os senhores tanto apreciam, estava eu disposto a deixá-la servindo-me do suicídio, ao passo que o meu sonho, o meu sonho... ah, o meu sonho veio revelar-me uma vida nova, grande, maravilhosa!
Atenção.

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